quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013

Caro Dr.


Caro Dr.

Não suporto ignorar o meu próprio ser.
Preciso ser o que sou nesta alma vivente.
Por mais que seja a droga potente,
Esta alma não tem mais recurso.
Eis que a vida surgiu de um impulso.


Caro Dr.

Permita viver meu niilismo abjeto.
Permita viver meu viver sem projeto.
Permita agora caminhar com meus passos,
Sem querer explicar as razões dos fracassos.


Caro Dr.

Não pretendo me enquadrar no modelo vigente.
Por mais que eu erre não deixarei de ser gente.
Por mais saciado não estarei satisfeito:
Na mais bela flor somente vejo defeitos.


Obrigado Dr.

Sinto agora aceitar minha percepção deste mundo.
Aceito, desejo e alimento cada vez mais profundo.
O que eu quero e talvez tão logo consiga.
Tantas outras insânias minha alma persiga.
Paciência Dr.
A conta Dr.
Até quando Dr.


Pedro Luiz Da Cas Viegas.
Porto Alegre, 02 de Julho de 2001


terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

Elegia 1938

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,
onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.
Praticas laboriosamente os gestos universais,
sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,
e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.
À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze
ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra
e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.
Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina
e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas
sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.
A literatura estragou tuas melhores horas de amor.
Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota
e adiar para outro século a felicidade coletiva.
Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição
porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan.


Carlos Drummond de Andrade

domingo, 3 de fevereiro de 2013

Casamento do céu e do inferno

No azul do céu de metileno
a lua irônica
diurética
é uma gravura de sala de jantar.

Anjos da guarda em expedição noturna
velam sonos púberes
espantando mosquitos
de cortinados e grinaldas.

Pela escada em espiral
diz-que tem virgens tresmalhadas,
incorporadas à via-láctea,
vaga-lumeando...

Por uma frincha
o diabo espreita com o olho torto.

Diabo tem uma luneta
que varre léguas de sete léguas
e tem ouvido fino
que nem violino.

São Pedro dorme
e o relógio do céu ronca mecânico.
Diabo espreita por uma frincha.

Lá embaixo
suspiram bocas machucadas.
Suspiram rezas? Suspiram manso,
de amor.

E os corpos enrolados
ficam mais enrolados ainda
e a carne penetra na carne.

Que a vontade de Deus se cumpra!
Tirante Laura e talvez Beatriz,
o resto vai para o inferno.


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE